Kim

Kim

Já tive alguns cães na minha vida. O primeiro foi o Pingo, um Pinscher que chegou lá em casa quando eu tinha 6 anos. Ele me viu crescer. Acompanhou minhas primeiras cólicas, meus primeiros beijos na boca, meus primeiros regimes. Por gostar dele, tive meu primeiro trabalho: passear com cachorros. Cobrava legal por isso. Tinha muitos fregueses. Nesta época era assim que se chamava a pessoa que comprava nossos serviços. Meu primeiro freguês foi o Boxer da D.Dulce, eu morria de medo dele, mas isto é outra historia.
O Pingo viveu quase 16 anos. Ele me esperava chegar deitado na poltrona Geli na sala do edifício dos Bancários, no Flamengo. E latia quando eu metia o pé no elevador, lá em baixo, fossem 11 ou 17 andares de diferença. Ele me fazia muita companhia. A gente vestia ele no Carnaval de Pierrot. E eu contava a ele meus segredos, o abraçava quando ficava muito feliz, muito triste ou só porque sempre gostei de abraçar.
Quando o Pingo morreu, meu Pai, ou não estava mais com a gente ou já iria embora deste mundo. Faço muitas confusões com datas. Sempre fiz e acho que isto suavizou algumas dores, ao longo do tempo. Eu não estava com ele. A gente teve que deixá-lo com meus tios quando nos mudamos para Petrópolis. AH, foi isto que aconteceu. O Pingo morreu depois do meu Pai. O que não altera nada a dor das perdas. Só enche os parágrafos. Datas são para isto… Também não vou meter meu Pai nesta historia de cachorros. Ele merece um livro em separado, não pequenos espaços num conto.
O fato é que ele morreu e eu não estava com ele. O Pingo, pingo nos is.
Depois veio o Chiquinho. Este comeu o primeiro lagarto que a Mamãe comprou depois da morte do Papai. Ficamos tão sem dinheiro nesta época, que carne era um luxo ao qual não tínhamos muitas pretensões. Ai, em um belo domingo, minha mãe assou aquela carne, iria fazer o maior banquete e o cachorro foi lá e comeu tudo em um momento de distração dela. Com barbante e tudo, pois era assim que ela cozinhava as carnes. Mais uma que quero meter nesta historia. Foi a cena mais cômica e triste ao mesmo tempo que vimos naquele ano. Teríamos outras. O Cachorro vira lata de nome Francisco, comeu a carne assada da família empobrecida e faminta. Bater no cão? Deu até vontade. Mas quem o conseguiu agarrar? Forte como ficou! Deu linha. Também, mesmo que a gente segurasse ele, quem teria coragem de bater? Acho que um dos meus irmãos teria!
Vou falar logo do Magaiver. Filho da Vadia e do Pluto era o Pastor menos alemão que apareceu. Lindo, eu o achava lindo. Ele foi um cachorro meigo e meio apalermado. Teve doenças serias quando nasceu e eu cuidei dele, um reveillon inteiro, sem sair, sem festas e sem procissão marítima. Fiquei lá, ao lado da cama, claro ficou na cama. Remédio de hora em hora. Sarou. Cresceu. Acompanhou minha historia naquela Angra dos Reis que eu resolvi morar. Uma noite, uma vez, só esta vez, que nem conversa de pescador, eu bebi demais. Acordei com ele deitado ao lado na cama. Um vexame. Jurei que não bebia mais. Hoje não bebo mais. O Magaiver também morreu, em um sete de Setembro, também com quase 16 anos. Ao contrario de outros acontecimentos, deste guardei a data. Talvez porque ele teve que ser sacrificado. E eu também não estava com ele.
A Tiana, a vira lata que chegou lá em casa um ano antes da minha filha nascer também morreu no ano passado. Com catorze anos. Ela, assim como o Magaiver, acompanharam grandes lances da minha vida. Principalmente a minha gravidez. Eles cuidavam da minha filha no carrinho. Sempre me fizeram companhia, ouviram meus lamentos, minhas conquistas e receberam muitos abraços. Sempre gostei de abraços.
Agora tenho o Kim. Ele me escolheu em um salão de cabeleireiro, há quase 7 anos atrás. Ele é um poodle branquinho. Se enroscou nos meus pés e o dono, que tinha entrado naquele lugar para desabafar seu desespero, pois precisava arrumar um dono para aquele novelo branquinho. Achou a dona, ou melhor, ele virou meu dono. Bicho se apossa da gente de uma forma incoerente. Isto para quem deixa. Minha amiga Helô jamais permitiria tal aproximação.De Angra dos Reis, fomos para o Rio de Janeiro, em Santa Teresa. Aqui neste bairro tão charmoso um Cokier spaniel perdido me adotou. O Amigão. Foi o único cachorro que me mordeu. Não, o Pingo também me deu uma dentada, só que não saiu sangue nem ficou uma cicatriz na perna. Este continuou no Brasil. Uma vez passei com a cadeira de rodinhas em cima da barriga dele, no que resultou na maior mordida de minha vida. Sangue para todo lado. Não consigo até hoje definir qual de nós dois ficou mais desolado ou assustado. Este também merece uma historia. O Gordo.
Depois, resolvemos atravessar o Atlântico e agora a gente mora em Luanda, Angola. O Kim veio com a gente e ficou aqui enquanto fomos para o Brasil para as Festas de final de ano. Quando voltei encontrei ele aqui, magrinho, todo quietinho, sem querer comer. Pegou uma febre, ficou com anemia. Começou logo com os antibióticos e carne na tigela, e já esta se recuperando.
Nestas noites silenciosas aqui em nossa casa, ele e eu, já que minha filha continua no Brasil, cuidando dele, atenta a sua respiração tão fraca e irregular, eu percebi o quanto este animalzinho precisa de mim. Eu nunca tinha me dado conta disto desta forma. Eu sempre achei que eu precisava deles. Da companhia fiel e silenciosa deles. Tratá-los fazia parte do contexto. E eles, com seus latidos e prepotência, nos defenderiam de todo o mal.
Com o Kim nos braços, tão indefeso eu me senti tão importante, tão grande, tão responsável que quase arrebentei o peito.
Continuo gostando de abraços. Abraço meu cãozinho e digo a ele: eu estou aqui.
E nesta noite africana de lua cheia, meus sentimentos atravessam o azulado escuro céu, aonde o Pingo, o Magaiver, o Pluto, a Vadia, a Luna e a Tiana estiverem, contando da certeza que eu sempre estive com eles. E soprando para o Amigão, para a Safada e o Xazan (os cachorros que ficaram em Angra e que também querem uma história) que eu estou com eles.
Esta gratidão percorre o tempo e o espaço.




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